sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Porque o referendo em Cachoeira do Sul não vale para as eleições de 2012

O Referendo, que tenta ser imposto, contrariando a todos os pressupostos jurídicos razoáveis, na cidade de Cachoeira do Sul, muito antes de ser anti-jurídico, jamais, em hipótese alguma, poderia valer para 2012. Porque afirmo isso? Ora, o STF fulminou a lei do ficha-limpa, justamente calcado no princípio da anterioridade. E mais. Usou como precedente a verticalização imposta pelas coligações.

O referido julgamento, tornou-se um marco jurídico indelével, nesse sentido e derrubou com todas as outras argumentações, acerca da anterioridade.

Para esclarecer, transcrevo o voto do Ministro Gilmar Mendes que foi acompanhado por mais cinco Ministros:

"A LC 135/2010 foi editada para regulamentar o art. 14, § 9º, da Constituição e, dessa forma, fixou novas causas de inelegibilidade que levam em conta fatos da vida pregressa do candidato.

Tendo em vista os parâmetros fixados na jurisprudência do STF, trata-se de uma lei complementar que claramente está abrangida pelo significado do vocábulo “lei” contido no art. 16 da Constituição, ou seja, é uma lei complementar que possui coeficiente de autonomia, generalidade e abstração e foi editada pelo Congresso Nacional no exercício da competência privativa da União para legislar sobre direito eleitoral.

Na medida em que legislou sobre causas de inelegibilidade, a LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência do STF como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. Não há dúvida, portanto, de que a alteração de regras de elegibilidade repercute de alguma forma no processo eleitoral.

Essas constatações, um tanto apodíticas, visam apenas a superar a aplicação de alguns parâmetros extraídos da jurisprudência do STF (parâmetros 1 e 2.1 acima delimitados), mas não prescindem de um exame mais profundo sobre a efetiva repercussão da LC 135/2010 no processo eleitoral, tendo em vista a teleologia do princípio da anterioridade eleitoral.

Em verdade, a questão não está tanto em saber se a LC 135/2010 interfere no processo eleitoral – o que resulta óbvio por meio das análises anteriores, baseadas em dois parâmetros jurisprudenciais –, mas se ela de alguma forma restringe direitos e garantias fundamentais do cidadão-eleitor, do cidadão-candidato e dos partidos políticos e, desse modo, atinge a igualdade de chances (Chancengleichheit) na competição eleitoral, com consequências diretas sobre a participação eleitoral das minorias. Se a resposta a essa questão for positiva, então deverá ser cumprido o mandamento constitucional extraído do princípio da anterioridade (art. 16) na qualidade de garantia fundamental componente do plexo de garantias do devido processo legal eleitoral (parâmetros 2.2 e 3).

Essa perspectiva de análise, que leva em conta a restrição de direitos e garantias fundamentais, é mais objetiva do que aquela que segue uma identificação subjetiva do casuísmo da alteração eleitoral. A experiência – inclusive da jurisprudência do STF – demonstra que a identificação do casuísmo acaba por levar à distinção subjetiva entre casuísmos bons ou não condenáveis (alterações ditas louváveis que visam à moralidade do pleito eleitoral) e casuísmos ruins ou condenáveis, com o intuito de submeter apenas estes últimos à vedação de vigência imediata imposta pelo art. 16 da Constituição (vide julgamento da ADI 354, especificamente o voto do Ministro Sydney Sanches).

Se o princípio da anterioridade eleitoral é identificado pela mais recente jurisprudência do STF como uma garantia fundamental do devido processo legal eleitoral, sua interpretação deve deixar de lado considerações pragmáticas que, no curso do pleito eleitoral, acabam por levar a apreciações subjetivas sobre a moralidade deste ou daquele candidato ou partido político.

3.1. O princípio da anterioridade eleitoral como garantia do devido processo legal eleitoral

A alteração de regras sobre inelegibilidade certamente interfere no processo político de escolha de candidatos, processo este que envolve os próprios candidatos, os partidos políticos e terceiros (por exemplo, os parentes que sofrerão com a possível causa de inelegibilidade prevista no § 7º do art. 14 da Constituição).

Todos sabem que a escolha de candidatos para as eleições não é feita da noite para o dia; antes constitui o resultado de um longo e complexo processo em que se mesclam diversas forças políticas.

Uma vez que a situação jurídica dos candidatos encontra-se caracterizada na forma das normas vigentes do processo eleitoral, eventual alteração significativa nas “regras do jogo” frustrar-lhes-ia ou prejudicar-lhes-ia as expectativas, estratégias e os planos razoavelmente objetivos de suas campanhas.

Na medida em que os partidos políticos detêm o monopólio da apresentação de candidaturas, eles são também diretamente afetados pelas modificações nas regras sobre elegibilidade.

Apenas para que se tenha a dimensão da repercussão que a modificação do quadro normativo sobre elegibilidade de candidatos pode acarretar, é pertinente exemplificar como o desrespeito do prazo mínimo para a alteração da legislação de regência eleitoral afetaria o processo de escolha de candidatos, especialmente nas seguintes hipóteses:

1) Se a alteração ocorrer em período inferior a um ano da data da eleição, compromete a própria possibilidade de escolha dos candidatos quanto à filiação partidária, uma vez que a modificação legislativa se dá em momento posterior aos prazos máximos fixados em lei (Lei n.º 9.504/1997, art. 9º, caput) para que todos os candidatos a cargos eletivos: (a) requeiram a respectiva inscrição eleitoral ou a transferência de seu domicílio para a circunscrição na qual pretendem concorrer; e (b) estejam com a filiação definitiva deferida pelo respectivo partido político;

2) Se a alteração ocorrer em período inferior a seis meses da data da eleição, afeta a situação jurídica dos candidatos em momento posterior aos prazos máximos fixados em lei para desincompatibilização dos titulares de cargos públicos eletivos executivos, bem como eventualmente de seu cônjuge ou dos respectivos parentes (consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção), que vierem a concorrer, no território de jurisdição do titular, para a mesma referida eleição subsequente (CF, art. 14, §§ 6º, 7º e 9º, c/c Lei Complementar n.º 64/1990, art. 1º, incisos II, III e IV, e §§ 1º a 3º);

3) Se a alteração ocorrer após 30 de junho do ano eleitoral, interfere na situação jurídica dos candidatos já escolhidos ou preteridos, uma vez que já expirado o prazo máximo fixado em lei para realização das convenções partidárias destinadas à escolha dos candidatos, assim como na deliberação sobre as coligações a serem eventualmente realizadas (Lei n.º 9.504/1997, art. 8º, caput); e

Nesse sentido, com todas as vênias, não pode ser coerente o argumento, adotado no Tribunal Superior Eleitoral, segundo o qual a LC 135/2010 é aplicável a esta eleição porque publicada antes das convenções partidárias, data na qual se iniciaria o processo eleitoral.

Esse sequer é o conceito de processo eleitoral presente na jurisprudência do STF, como já analisado. Se levarmos a sério a jurisprudência, teremos de concluir que a LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. E, frise-se, essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior.

A EC n.° 52, que tratou da chamada “verticalização” das coligações, foi publicada em 8 de março de 2006, isto é, muito antes das convenções partidárias. E o STF, no julgamento da ADI 3.685, considerou que ela interferia no processo eleitoral e, portanto, deveria respeitar o princípio da anterioridade eleitoral. Isso porque o processo eleitoral, no entendimento do Tribunal, abarca o processo de definição das coligações e de articulação política de estratégias eleitorais, que não ocorre somente nas convenções partidárias. Na ocasião, o Ministro Carlos Britto se manifestou de forma muito enfática sobre o tema:

“(…) E o fato é que a opção constitucional pela estabilidade ânua do processo eleitoral é bem mais serviente desse conjunto de valores em que os grêmios partidários gravitam. É algo bem mais previsível – e portanto mais seguro e autêntico – para quem pretenda se filiar ou prosseguir partidariamente filiado. O mesmo acontecendo, claro, com todos aqueles que pretendam se candidatar ou se recandidatar a cargo eletivo”.

Como se vê, a fase pré-eleitoral de que trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das convenções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal Superior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso.

A LC n.° 135/2010 foi publicada no dia 4 de junho de 2010, portanto poucos dias antes realização das convenções partidárias (10 a 30 de junho, art. 8º da Lei 9.504/97). Seria insensato considerar que – no período entre o dia 4 de junho e o dia 5 de julho (data da formalização dos pedidos de registro de candidatura) – se pudesse recomeçar e redefinir o processo político de escolha de candidaturas de acordo com as novas regras.

O entendimento segundo o qual a verificação das condições de elegibilidade e das causas de inelegibilidade deve observar as regras vigentes no dia 5 de julho não significa, de forma alguma, que tais regras sejam aquelas que foram publicadas a poucas semanas dessa data de referência. O complexo processo político de escolha de candidaturas não se realiza em apenas algumas semanas, ainda mais se tiver que se adequar, de forma apressada, a novas regras que alteram causas de inelegibilidade. Entendimento contrário levaria à situação-limite de aplicação imediata, no dia 5 de julho, de uma lei de inelegibilidade publicada no dia 4 de julho.

Em síntese, ao se efetuar um diagnóstico minimamente preocupado com as repercussões da admissibilidade, a qualquer tempo, de mudanças no processo eleitoral, constata-se que surgem complicações não apenas para a situação jurídica dos candidatos, mas também para a própria autonomia e liberdade dos partidos políticos, os quais ficariam totalmente à mercê da aleatoriedade de eventuais mudanças legislativas.

A questão, dessa forma, gira em torno da restrição de direitos fundamentais de caráter político. Nesse contexto, cumpre fundamental papel o princípio da anterioridade eleitoral como garantia constitucional do devido processo legal eleitoral.

Neste ponto, cabe ressaltar que são completamente infundados os argumentos no sentido de que certas normas do capítulo dos direitos políticos na Constituição não constituiriam direitos fundamentais de caráter individual.

Modernamente, a compreensão unitária dos direitos fundamentais decorre do pluralismo da democracia material contemporânea. A incindibilidade dos direitos fundamentais e a inexistência de diferenças estruturais entre os variados tipos de direitos determinam a superação dos modelos teóricos embasados na separação estanque entre as esferas dos direitos sociais (positivos ou prestacionais) e dos direitos de liberdade (negativos), afirmando-se a aplicabilidade imediata de todas as normas constitucionais, a partir da unidade de sentido dos direitos fundamentais. A diferença entre direitos negativos e direitos positivos é meramente de grau, uma vez que em ambos há expectativas negativas e positivas.

Nesse contexto, os direitos políticos fundamentais apresentam uma estrutura jurídica complexa, pois exteriorizam características negativas (primeira geração) e, ao mesmo tempo, positivas (segunda e terceira gerações). São preponderantemente direitos fundamentais individuais, pois garantem esferas de não interferência do Estado no âmbito das autonomias decisórias individuais, mas são exercitáveis mediante a ação garantidora do Estado, o qual deve organizar procedimentos que têm por objetivo instrumentalizar a concreção do exercício dos direitos, como é o caso, por exemplo, das eleições periódicas. De Vergotini, ao reconhecer a importância do conteúdo do direito para a sua classificação, propõe que se considere a existência, no âmbito da liberdade negativa (direitos individuais), de dois fenômenos distintos, mas complementares, quais sejam, liberdade do Estado e liberdade no Estado. O primeiro, liberdade do Estado, consubstancia-se nos direitos exercitáveis contra o poder político, os quais têm por escopo impedir interferências indevidas nas esferas privadas dos cidadãos. O segundo, liberdade no Estado, refere-se à participação ativa da pessoa na atividade política, traduzindo os primados de uma sociedade democrática e participativa.

O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las.

O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos.

Esse entendimento está consignado na jurisprudência desta Corte, especificamente no julgamento da ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie (julg. em 22.3.2006), o qual representa um marco na evolução jurisprudencial sobre o art. 16 da Constituição. Nesse julgamento, passou-se a identificar no art. 16 uma garantia fundamental do cidadão-eleitor, do cidadão-candidato e dos partidos políticos. Fez-se uma analogia com a garantia da anterioridade tributária fixada no art. 150, III, b, da Constituição, no sentido de que, se o princípio da anterioridade tributária constitui uma garantia do cidadão-contribuinte, tal como afirmado pelo STF no julgamento da ADI 939 (Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 17.12.1993), o princípio da anterioridade eleitoral é uma garantia do cidadão, não apenas do eleitor, mas também do candidato e dos partidos políticos. Nesse sentido, consolidou-se a noção de que o art. 16 é garantia de um “devido processo legal eleitoral”, expressão originada da interpretação das razões do voto do Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento da ADI 354."

Como dizia a tempos em minha coluna no Jornal do Povo, ESCREVI E ASSINO EMBAIXO.

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