Texto de Gabriela Rollemberg e Igor Miranda da Silva
A partir do reconhecimento da constitucionalidade das alterações introduzidas pela Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n° 135/2010), e da definição sobre a repercussão da sua aplicação sobre os fatos pretéritos ao início da sua vigência, não nos cabe reprisar os argumentos que já foram excessivamente debatidos e que nos levam a discordar da conclusão final do Supremo Tribunal Federal. Afinal, o assunto já suscitou excelentes debates propriamente jurídicos ou síntese do julgamento. Procuramos fazer uma análise distinta, com a busca crítica das razões legislativas e jurisdicionais e suas necessárias consequências jurídicas e sociais.
Três pontos argumentativos marcaram o julgamento do Supremo: a produção de efeitos sobre a cidadania antes do trânsito em julgado da decisão judicial, a retroatividade da Lei da Ficha Limpa e a influência da aspiração popular sobre o julgamento técnico da Suprema Corte.
Uma reflexão sobre a necessidade de uma Lei da Ficha Limpa revela que o prognóstico não está na existência de corrupção. Inegavelmente, políticos ímprobos estão presentes não só no Brasil – não são exclusividade nossa tal como a jabuticaba –, pois exercem o poder também ao redor do mundo.
Sendo assim, por qual motivo se entendeu que no Brasil valeria a pena mitigar direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, estabelecendo hipóteses de inelegibilidade muito mais rigorosas, com a finalidade de mitigar a participação do suposto “ficha suja” no cenário político-eleitoral?
Ora, a legislação procurou remendar a morosidade do Judiciário no julgamento de ilícitos e, supostamente, tutelar a ausência de educação política do eleitor. Nesse sentido, deve-se perquirir se o objetivo normativo será atingido e por qual preço.
O uso normativo da expressão “proferida por órgão colegiado” representa um reconhecimento institucional da ineficiência da tutela jurisdicional. Sem muito esforço intelectual, qualquer jurista percebe que a decisão de órgão colegiado antes do trânsito não faz coisa julgada e poderá ser reformada pelos Tribunais Superiores.
Com efeito, a Lei da Ficha Limpa admite a hipotética situação de inelegibilidade de um cidadão (condenado por órgão colegiado) que posteriormente poderá ser inocentado nas instâncias superiores. Ou seja, abriu-se espaço para uma inegável injustiça e violação de direito fundamental, sem que seja possível restituir o bem jurídico que lhe será subtraído.
Argumentou-se no julgamento quanto à possibilidade de adoção de medidas cautelares para suspensão dos efeitos do julgado colegiado, entretanto, há uma evidente inversão de presunção de inocência.
Afastou-se a aplicação do princípio da presunção de inocência na esfera eleitoral, por considerar que nos encontramos no momento em “quadra histórica bem distinta”, o que se depreenderia a partir do fenômeno da judicialização da política, que decorreria da desilusão com a política e com o suposto reconhecimento da independência do Poder Judiciário no Brasil [voto do Ministro Luiz Fux].
A suposta reação social contrária ao julgamento da ADPF nº 144 (no qual se assentou a aplicação do princípio da presunção de inocência à seara eleitoral) e do RE n. 633.703 (que afastou a aplicação da lei para a eleição de 2010) foi utilizada como argumento supraprocessual, no sentido que não cabe ao STF desconsiderar a existência de um descompasso entre a sua jurisprudência e a hoje fortíssima opinião popular a respeito do tema “ficha limpa”.
Não defendemos a ampliação interpretativa do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, quando expressamente menciona “trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Porém, o princípio da presunção de inocência sempre existiu como decorrente do devido processo legal, apesar de apenas ter sido contemplado de forma expressa na Constituição de 1988, como aplicação em todos os ramos do Direito onde haja atividade sancionadora.
Portanto, o devido processo legal consagrado no inciso LIV também do art. 5º da CF/88 demanda uma análise de presunção de inocência até que se prove o contrário, mesmo fora do âmbito penal. Ademais, a aplicação de inelegibilidade representará uma verdadeira imutabilidade da decisão judicial não transitada, uma vez que eventual impossibilidade de participação do pleito não poderá ser restituída quando o trânsito em julgado se der em sentido diverso daquele estabelecido pelo julgamento do órgão colegiado.
Interessante verificar que, no tocante à nomeação de cargos públicos (direito administrativo), a jurisprudência é pacífica quanto à impossibilidade da obstrução, por lei ou edital, o direito de inscrição ou de investidura com base em questões criminais ou de improbidade ainda não transitadas em julgado[1].
A questão merece uma maior censura crítica na hipótese da alínea “e” do inciso I do art. 1º da LC N. 64/90 (inelegibilidade por condenação por crime), o devido processo legal criminal exige expressamente o trânsito em julgado (inciso LVII do artigo 5º da CF/88); não apenas como proteção da liberdade, mas também dos bens, entre eles os direitos políticos, do acusado (art. 5º, LIV, da CF/88).
Na verdade, não haverá surpresa caso o Judiciário amplamente conceda efeito suspensivo às decisões de órgãos colegiados pendentes de recurso, com a redução relativa do efeito prático para a inovação normativa, e nem consideramos que isso será prejudicial, mas antes razoável em virtude da necessidade de cautela na aplicação de restrições tão graves de direitos fundamentais.
Afinal, a solução não está na antecipação dos efeitos da condenação, mas na ampliação da tutela jurisdicional, em corrigir as imperfeições do sistema processual e na implementação de medidas efetivas de melhoramento na gestão de processos judiciais, de forma a reduzir drasticamente a morosidade na tramitação dos feitos. O certo é que o jurisdicionado não pode ser penalizado pela demora do Poder Judiciário, e muito menos ser tido como o causador da demora da marcha processual. Se os recursos e medidas processuais estão disponíveis, o seu uso é a mais clara expressão do direito constitucional à ampla defesa.
A indagação do ilustre Ministro Carlos Ayres Britto durante o debate do julgamento da Lei da Ficha Limpa (“uma pessoa que desfila pela passarela quase inteira do Código Penal, ou da Lei de Improbidade Administrativa, pode se apresentar como candidato?”) merece uma reflexão do próprio Poder Judiciário sobre as consequências jurídicas e sociais da morosidade jurisdicional, assim como da impunidade.
Uma outra questão que se coloca é que a Lei da Ficha Limpa implica numa clara redução do poder do voto, numa tutela do voto e do eleitor, pois estabelece quem não poderá ser escolhido por ele. Numa democracia representativa, caberia apenas ao eleitor selecionar o candidato no qual ele depositará a sua confiança.
No entanto, parte-se do claro pressuposto de que o eleitor não sabe votar, na medida em que a Lei estabelece quem não pode sequer fazer parte da sua esfera de escolha, desconsiderando-se que, em princípio, os cidadãos deveriam ter a oportunidade de escolher alguém com problemas com a Justiça, até por considerá-lo injustiçado.
Não estamos dizendo que o eleitor sabe ou não votar, mas não podemos tentar suprir com leis e regulamentos o que falta em informação e educação. Se o objetivo é melhorar a qualidade dos políticos, existem alternativas que não diminuem o alcance do voto. Por que não melhoramos a qualidade dos eleitores?
No tocante à influência da opinião popular sobre os julgamentos da Corte, observo que, segundo as lições de Norberto Bobbio, o Estado somente é democrático quando também é de direito. O exercício legítimo da democracia pressupõe a observância do direito posto.
De fato, a opinião pública nacional declara não achar adequado a possibilidade de candidatura a cargo eletivo de quem esteja sendo processado. Conforme os dados da pesquisa intitulada “Imagem das Instituições Públicas Brasileiras”, encomendada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) à Opinião Consultoria, com apoio do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Brasília:
Não confiam na Câmara dos Deputados 83,1% dos brasileiros e não confiam no Senado 80,7%, revela pesquisa. O estudo mostra que a maioria maciça (94,3%) considera que político processado na Justiça não pode disputar eleição. Apenas 4,3% aprovam essa situação.[2]
Contudo, há uma aparente contradição na opinião pública, pois
levantamento realizado pelo Projeto Excelências da ONG Transparência Brasil em 2007, pela Revista Época e pelo Jornal O Estado de São Paulo demonstra que impressionante percentual dos políticos nacionais é alvo de inquérito policial, denúncia ou processo: dos 81 senadores, 30 (37%) têm ocorrências na Justiça e/ou Tribunais de Contas. Praticamente um terço dos deputados federais também apresenta ocorrências na Justiça ou em Tribunais de Contas: dos 513 parlamentares, 163 estão nessa situação, o que corresponde a 32% dos membros daquela Casa, sendo que pesquisa realizada pelo Jornal O Estado de São Paulo nos tribunais dos Estados e Distrito Federal demonstrou que 40 dos 244 novos deputados federais que tomaram posse em 2007 são alvo de processos judiciais, por improbidade administrativa, crimes contra a administração da Justiça, entre outras acusações.[3]
É relevante observar que a população que aplaude a aprovação da Ficha Limpa é a mesma que vota e reelege os candidatos tidos como corruptos (por responderem a ações judiciais). Afinal, políticos sabidamente processados são repetidamente eleitos, alguns alcançando, inclusive, a condição de campeões nacionais de sufrágio.
Como bem observa Luiz Roberto Bodstein
a corrupção é mera conseqüência do padrão moral no qual somos iniciados desde a mais tenra idade. A desonestidade, o engano e a falta de caráter é algo intrínseco e altamente difundido na maioria das atividades que se desenvolve neste país, e faz parte do propalado ‘jeitinho brasileiro.[4]
Ainda que elogiável a tentativa de combate à corrupção com a criação de novas inelegibilidades, a melhor solução está no combate à raiz do problema como fato social. No cotidiano, muitas das pessoas que criticam os políticos e a política cometem atos que vão desde “furar uma fila” até a se manter na folha de pagamento de um órgão público no qual nunca desenvolveu qualquer atividade. O mais grave – e é o que já está amplamente difundido na cultura deste país – é quando se perde a noção de que tais atitudes se constituem em desonestidade.
Por conseguinte, há uma nítida distorção entre a vontade e a opinião popular. A utilização da opinião popular como pedra angular de fundamento da constitucionalidade, no caso, representa a utilização de pressuposto equivocado.
Além disso, não se pode deixar de levar em consideração que a confiança dos brasileiros no funcionamento da democracia tem sido abalada a cada dia, muitas vezes não só pelas práticas escusas noticiadas, mas principalmente porque a pauta midiática se restringe a isso, depreciando constantemente a classe política, se omitindo muitas vezes em noticiar ações políticas importantes de pessoas públicas corretas.[5]
As inelegibilidades previstas pela Lei da Ficha Limpa são relevantes, mas se deve ter cautela quanto ao direito posto, sendo que isso não significa esmorecimento. Maior rigor não pode representar o enfraquecimento de princípios constitucionais historicamente conquistados, como a irretroatividade normativa, quanto à necessidade de se ter certeza das consequências dos atos praticados no passado.
O certo é que a mitigação da aplicação de determinados princípios constitucionais poderá trazer consequências não pretendidas e sequer cogitadas no presente momento. A preservação do Estado Democrático de Direito pressupõe o amplo e irrestrito respeito aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, evitando-se o surgimento de qualquer exceção ao regime constitucional, por mais legítima possa parecer.
O dever da Corte Constitucional é resguardar a manifestação política do poder constitucional, histórica e permanentemente consagrado: seja em sintonia com a opinião pública atual, seja no resguardo da minoria (como expressão contramajoritária). Com efeito, o papel do Supremo é reafirmar ou reconhecer o direito conquistado, não superá-lo em nome do clamor popular.
O argumento do suposto sincronismo constitucional com a opinião pública no caso da Lei da Ficha Limpa traz uma perigosa expectativa popular por efetiva solução de problemas sociais por meio da criação de uma nova lei. Será necessário aguardar quais serão as consequências quando a sociedade perceber que a Lei da Ficha Limpa não resolverá todas as mazelas políticas nacionais.
Esperamos, sinceramente, que a declaração de constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa signifique um avanço, e que não oportunize uma compulsão legislativa que ocasione outras flexibilizações de direitos constitucionais historicamente conquistados, em nome da opinião popular ou da moralidade.
Afinal, é evidente que criar leis simplesmente não resolve problema algum. Nunca foi solução e jamais o será. Tampouco, a solução reside na cassação do exercício pleno do poder de escolha do eleitor.
A decisão de enfrentar verdadeiramente o problema carece de um grande investimento em educação, único instrumento capaz de libertar os eleitores, por meio da conscientização do real poder que eles têm nas mãos. Talvez exatamente por essa razão não seja possível identificar a vontade política de solucionar o problema.
O exercício da plena cidadania não se alcança de outra forma, senão através da educação, que é direito de todos e dever do Estado e da família, e que deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua preparação para o trabalho, conforme dispõe o artigo 205 da Constituição Federal.
Sabemos que seja nos cursos do ensino médio, seja nos cursos de nível superior, inclusive de Direito, não há uma cadeira específica e obrigatória que trate de noções básicas de cidadania, ou mesmo explique questões basilares sobre o voto e suas consequências, ou quais as formas de participação do cidadão nas esferas públicas de decisão.
Há, na verdade, uma evidente lacuna a ser preenchida e que vem a ser o preparo dos cidadãos para o pleno exercício da cidadania, e consequentemente, do exercício do direito do voto. No caso, perguntamos: as pedras já sabem ou ainda precisam aprender?
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